São Paulo, 15 de abril de 2020
NOTA TÉCNICA
Considerando a evolução da pandemia da doença COVID 19 no Brasil e que tratamos de uma doença nova, com dados científicos, técnicos e logísticos sendo atualizados diuturnamente, a Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica opta pela emissão desta nota técnica para atualização dos nossos associados com relação a aspectos relativos ao exercício da cirurgia pediátrica.
1. A doença Covid 19 tem tipicamente manifestações mais brandas em pacientes pediátricos. Apenas uma minoria das crianças e adolescentes manifesta quadros clínicos graves. No entanto, as crianças sofrem infecções pelo coronavírus, em sua maioria assintomáticas ou com sintomas brandos. Disso decorrem várias implicações na prática da cirurgia pediátrica:
- 1.a Apesar da relativa raridade, foram observadas no Brasil várias internações pediátricas por Covid 19, inclusive em UTI, e foram notificados 5 óbitos, 3 em lactentes portadores de comorbidades e 2 em adolescentes. Segundo a literatura lactentes têm concentrado os quadros mais graves quando comparados com as demais faixas etárias. Há documentação de presença viral em neonatos frutos de mães contaminadas (e, portanto, potencial de transmissão da doença e necessidade de isolamento da criança), mas até o momento não foi detectada a covid 19 sintomática em neonatos.
- 1.b A doença covid 19, apesar da apresentação típica ser através de sintomas respiratórios, pneumonia ou SRAG, pode se apresentar de forma atípica, com quadro de dor abdominal e/ou diarreia. Também foram relatados quadros de acrocianose e úlceras de extremidades. Estes dois quadros podem se apresentar para avaliação de cirurgiões pediátricos, para excluir abdome agudo, síndrome vascular isquêmica e úlceras cutâneas a esclarecer e é necessário o reconhecimento do risco de envolvimento do novo coronavírus em crianças apresentando este quadro clínico. Ao menos alguns casos de dor abdominal se deveram à adenite mesentérica, e há relatos profissionais de laparotomias exploradoras, alguns com diagnóstico presumido de apendicite. Trata-se de problema importante, considerando o risco de contaminação do profissional e de agravamento para o paciente, em casos de doentes de covid 19 submetidos á cirurgia. Na vigência da pandemia, todos os pacientes devem ser plenamente investigados, com história epidemiológica e investigação de sintomas associados, a fim de diminuir a possibilidade de não identificar um caso atípico de covid 19.
- 1.c Derrames pleurais são incomuns como expressão da covid 19, mas podem fazer parte de quadros de co-infecção.
- 1.d Pacientes pediátricos são transmissores frequentes da doença. O atendimento pediátrico exige os mesmos cuidados de antissepsia usados para o atendimento de pacientes adultos. O profissional deve estar paramentado para consultas de doentes não suspeitos usando minimamente máscara (inclusive crianças maiores que 2 anos), avental de isolamento, gorro e luvas. No caso de doentes suspeitos (com história epidemiológica, sintomas respiratórios típicos ou sintomas menos comuns da doença) é necessário o uso de máscara com filtro anti-viral (N95), face shield, óculos de proteção e avental impermeável, para proteção do profissional. Consultórios pediátricos precisam respeitar as orientações técnicas com relação à profilaxia da transmissão: pacientes, acompanhantes e auxiliares técnicos usando máscaras, consultas marcadas com intervalos suficientes para evitar encontros entre pacientes, disponibilidade de material para higienização das mãos (água, sabão e álcool gel). Brinquedos de uso comum e socialização entre pacientes estão desaconselhados durante a pandemia. Acompanhantes devem ser reduzidos em número dentro da medida do possível.
- 1.e Existe a possibilidade de transmissão do vírus por via fecal, uma vez que foi detectado em amostra de fezes de pacientes pediátricos. Considerando esta possibilidade, a manipulação e o descarte de fraldas exigem cuidados específicos.
2. As principais modificações no atendimento médico durante a pandemia de covid 19 são:
- 2.a Consultas de rotina envolvendo quadros clínicos não emergenciais, sem risco de morte, perda do timing para tratamento efetivo ou perda irreversível de função devem ser adiadas até a suspensão das medidas de isolamento social pela pandemia. Exames complementares devem ser feitos usando a mesma racionalidade. Podem ser feitas, no entanto, consultas para orientação clínica através de telemedicina, embora não tenha sido esclarecido até o momento pelo Conselho Federal de Medicina como devem ser feitas cobranças deste serviço em clínica privada ou o pagamento por Operadoras de saúde complementar.
- 2.b O atendimento em urgência e emergência não deve ser modificado, exceto no que tange ao uso de cuidados específicos de antissepsia e cuidados com contatos pessoais.
- 2.c Pacientes portadores de covid 19 via de regra são mantidos em isolamento. Esta questão é árdua no caso de pacientes pediátricos e não temos até o momento conhecimento quanto a uma regulamentação específica, considerando o conflito entre o risco epidemiológico, a presença óbvia de contato entre cuidador e criança durante o período de latência da doença e o direito reconhecido à presença de acompanhante no estatuto da criança e do adolescente.
3. A execução de cirurgias durante a epidemia de covid 19 obedecerá a critérios de prioridade:
- 3.a Têm sido relatadas complicações graves (inclusive mortes) em adultos operados durante a fase prodrômica da covid 19. Não há até o momento evidências semelhantes em crianças, mas é aconselhável cuidado e a utilização de um consentimento informado específico, citando especificamente o risco de complicações em pacientes portadores assintomáticos ou em pródromo, no caso da necessidade de cirurgia durante o período da pandemia, inclusive para cirurgias de urgência.
- 3.b Cirurgias plenamente eletivas (aquelas que não envolvem risco de morte, impossibilidade futura de tratamento efetivo caso o tratamento não seja feito imediatamente ou risco de perda de função de um órgão) deverão ser adiadas até o final da pandemia.
- 3.c Cirurgias de urgência (risco de perda de função de um órgão ou impossibilidade de tratamento futuro efetivo) devem ser agendadas conforme a necessidade clínica. É aconselhado teste para excluir a possibilidade de contaminação assintomática ou período prodrômico (história epidemiológica, temperatura corporal, coleta de swab nasal e PCR) em data próxima à cirurgia, sempre que possível.
- 3.d Cirurgias indispensáveis para possibilitar alta hospitalar deverão ser agendadas sob critérios específicos de segurança, a fim de afastar o paciente do risco de complicações e contaminação no ambiente hospitalar, preservar leitos hospitalares e economizar EPI durante o período crítico. Dentro do mesmo critério estão pacientes que não respondem adequadamente ao tratamento conservador. Como exemplos, citamos hérnias inguinais com episódios repetitivos de estrangulamento em período curto e gastrostomias alimentares para pacientes que não podem ser alimentados por via oral.
- 3.e Cirurgias de emergência e cirurgias de urgência em que não houve a possibilidade de testagem prévia do paciente devem obedecer aos critérios de antissepsia aconselhados para o manejo da covid 19, assumindo o risco do paciente em questão ser positivo para a doença. No caso de anestesia geral, indução venosa é preferencial e ventilação sob máscara deve ser minimizada. A intubação do paciente exige uso de antissepsia plena (máscara N95, face shield, óculos de proteção, capote impermeável e luvas). A indução e intubação do paciente devem ser feitas com o mínimo de pessoal na sala de cirurgia. A equipe cirúrgica aguarda fora da sala de cirurgia e só entra após o paciente estar entubado e posto em circuito fechado provido de filtro HEPA. Os mesmos cuidados devem ser assumidos no momento da extubação. A sala de cirurgia necessitará de limpeza completa e só poderá ser reutilizada após um período mínimo de 30 minutos. Material de uso pessoal dos cirurgiões, inclusive telefones celulares, deverá ser armazenado fora da sala de cirurgia. Material protetivo não descartável (óculos, face shield) deve ser higienizado antes de novo uso, conforme as instruções específicas. Todos os cuidados de proteção são extensíveis ao atendimento de paradas cardíacas.
- 3.f O uso de bisturi elétrico deverá ser restrito ao mínimo durante a cirurgia, pelo risco de espraiamento de partículas virais aspiráveis. Bipolar é preferível ao monopolar. Bisturis ultrasônicos têm risco ainda maior de espraiamento de partículas com capacidade infectante e devem ser evitados.
- 3.g A maior parte das sociedades cirúrgicas tem desaconselhado ou advogado o uso extremamente cuidadoso de cirurgia videolaparoscópica em casos diagnosticados ou suspeitos de covid 19, pelo risco de espraiamento de partículas infectantes por vazamento de gás sob pressão durante a cirurgia ou no momento da desinsuflação. No caso da cirurgia videolaparoscópica ser a opção escolhida, aconselha-se manter a pressão de insuflação no menor nível possível, recusar trocarteres com vazamentos e aspirar cuidadosamente o gás intracavitário antes do encerramento da cirurgia.
- 3.h Cirurgias de emergência serão presumivelmente incomuns em pacientes portadores da Covid 19, mas os cirurgiões pediátricos possivelmente serão chamados a executar procedimentos de acesso venoso profundo (inclusive para diálise) e traqueostomias nestes pacientes, no caso de assistência em terapia intensiva prolongada. Todos os cuidados descritos deverão ser respeitados, inclusive no caso de procedimentos à beira do leito. Punções venosas são preferenciais aos acessos por dissecção, e os procedimentos deverão ser realizados com orientação ultrassonográfica para aumentar a eficiência e rapidez e diminuir os riscos ocupacionais.
4. Qualquer paciente que venha a óbito sob suspeita de Covid 19 deverá ter a suspeita claramente documentada, por questões epidemiológicas (registro de morte), de cuidados protetivos frente à futura manipulação do cadáver e à família (risco de contaminação em cerimônias fúnebres), ainda que testes comprobatórios estejam pendentes.
5. A presença de estudantes de medicina deve ser cuidadosamente avaliada, avaliando o risco de contaminação (pelo excedente de pessoal no ambiente hospitalar, consumo de EPI e risco individual do aluno) em conjunto com o possível aprendizado e eventual ajuda técnica em circunstâncias de déficit de pessoal. Com relação aos residentes, é necessário adequar as necessidades de pessoal operacional às de aprendizado e ao risco envolvido, considerando que cirurgias e manobras técnicas em pacientes contaminados deverão ser feitas preferencialmente por pessoal experiente, para maximizar a eficiência e minimizar o risco.
Neste momento extremamente delicado do exercício profissional e da vida do país a Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica se solidariza com todo o pessoal de saúde que vive riscos pessoais e uma situação de enorme estresse para realizar seu compromisso com a profissão e com os pacientes. Lamentamos profundamente os profissionais que adoeceram ou faleceram em decorrência da epidemia, a maior parte deles vítimas dos riscos ocupacionais. A maior exposição e o maior risco de aspiração de partículas virais são plenamente reconhecidos em médicos, especialmente aqueles envolvidos em tratamento intensivo, manipulação de secreções corporais e atendimento a pacientes em prótese ventilatória.
Nesta luta difícil já perdemos ao menos um cirurgião pediátrico, no Estado do Maranhão. Que ele fique em paz. Inclusive como homenagem a ele, continuaremos a lutar com dignidade, segurança e sabedoria, usando a ciência que sabemos e a que encontraremos.
Esta nota se baseou em dados científicos e de regulamentação disponíveis até esta data. A CIPE irá manter disponíveis para consulta de nossos associados artigos de informação de interesse para os cirurgiões pediátricos, inclusive os referentes à regulamentação das atividades durante o período da pandemia, pelo Ministério da Saúde, ANVISA e Secretarias de Saúde estaduais em sua página (www.cipe.org.br).
Com um abraço fraterno para todos
Aguardando dias melhores, que virão com certeza
Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica